quarta-feira, março 28, 2007
Recurso de personalidade
Caminhando neste reconhecimento pessoal, perguntava-se por que razão se andara a destruir. De algum modo, havia que encaixar na sua representação todas as mágoas consecutivamente preservadas em álcool, até que a sua memória começasse a evidenciar sinais de estar a derreter. Teria ainda que dar um destino aos dias declinados num fumo apetecivelmente ilusório, quando o único pensamento era acabar com apetência para tomar consciência de si. Afinal levara demasiadamente a peito o seu teatro e, apesar disso, os resultados revelam-se longe de satisfatórios. Ao fim e ao cabo, haviam sido meses e meses, anos mesmo, de um cinismo que anteriormente não reconhecia dentro de si. Nesse anteriormente, nada conseguira pelo seu eu, e agora esse mesmo eu, esfrangalhado pela actividade da personagem que criara, já não era capaz de se manifestar.
Estava sentado à mesa da cozinha, acompanhado pelo silêncio da casa. Todas estas deambulações tinham sido periodicamente interrompidas para encher de vinho o copo e cuja garrafa neste momento repousava vazia à sua frente. Decidiu-se a arrastar-se para a sala, onde na pequena garrafeira o esperava alguma garrafa de vodka.
quinta-feira, março 22, 2007
Fui ao baile da paróquia
Há momentos em que, na verdade, não pondero as minhas reais aptidões para uma tarefa e o ridículo que poderei vir a cair. Foi numa dessas ocasiões de inconsciência que procurei a tua mão e te puxei para mim. Vi surpresa no teu rosto e tu, em mim, terás visto algum espanto. Apercebi-me da indecisão que me corria no gesto decidido que praticara. Que pensava eu fazer? Tinha-te presa nos meus braços, com suavidade. A minha inconsciência rogava para conhecer o sabor dos teus lábios mas, na fracção de tempo que este repente utilizou, a consciência sobrepôs-se e falou-te por mim. Dançamos, disse. E dançámos. Talvez melhor descrito fosse, eu tentei fazer qualquer coisa que se parecesse com coordenação de passos e ritmos. Tentei seguir-te a perícia no rodopio. O meu corpo pedia-te contacto. Contacto e maior contacto e contacto mais ousado.
Corremos incessantemente a sala, alucinados pelo ritmo da música e do álcool. Quase não conversámos mais. Por vezes, entre duas músicas trocámos breves palavras, ou após o falhanço de um passo tecnicamente mais arrojado, comentávamos jocosamente a falta de perícia de quem errava. Sorríamo-nos e olhávamo-nos divertidos. Eu sentia-me deslumbrado com o prazer da atenção que me dispensavas. Tinha-te entre as minhas mãos. As trajectórias que tomavas, impelidas por mim ou de mote próprio, levavam-me a correr-te o corpo com as mãos em auxílio coreográfico. Agarrava-te para te lançar de novo em movimento livre e recuperar-te junto a mim, em abraço.
No final da noite, contrafeitos, tivemos que parar. As luzes haviam sido desligadas e a música há muito cessara. Apenas permanecia o tédio de quem fechava a casa e tinha de suportar os que retardavam o seu descanso. Dentro de nós ainda circulava um frenesim cansado em regime de auto-gestão corporal. Saímos para o amanhecer ameno que começava a apagar estrelas. Fomos percorrendo as ruelas da povoação misturando os passos arrastados com a conversa a tempos excitada, talvez desconexa. Nos ouvidos soava o chilrear madrugador das aves e amaldiçoámos a excitação avícola. Pedíamos silêncio.
As pernas transportaram-nos os corpos para os descampados nos arredores da aldeia. Sentados, calados, apoiando as costas um no outro, permanecemos de olhos fechados a ver o azul surgir para dominar o céu matinal. Os corpos resvalaram lado a lado e pediram para dormir.
quarta-feira, março 14, 2007
Duas cenas
Projecto do Priolo, do Nordeste, bom dia. Daqui fala... (e a conversa de telefonista-chaga do costume.)
segunda-feira, março 05, 2007
Em meio minuto
domingo, março 04, 2007
Despertar
De quando havia entrado nesta via restava-lhe uma ténue lembrança. Talvez que fosse coisa para se arrastar há meses mas, no entanto, em nada estranharia se lhe dissessem que já eram anos. Tinha sim presente o facto de a busca interior dos porquês lhe ser indiferente. Considerava indiferente à falta de qualificativo mais desprezível.
sábado, março 03, 2007
Interacção
No decorrer dos anos acabou por desenvolver um sistema de restrição social. Em tal domínio fechava-se para proteger a notória incapacidade de estabelecer contactos pessoais. Quando dentro desse sistema, a proximidade de outras pessoas desencadeava uma rápida reacção de exclusão que o afastava da interacção com terceiros. Assim decorriam horas infindas de observação. Procurava recolher o máximo de informação acerca de tácticas e temáticas de aproximação. Dentro da sua cabeça desenvolvia-se um esforço enorme para sistematizar os dados recolhidos, com vista a uma futura aplicação. Quando, ainda não definira.
A cada momento decorrido, os centros de acção pediam-lhe para entrar em campo e usufruir do conhecimento entretanto adquirido. De modo cauteloso, os decisores mantinham-nos inactivos, expectantes. Recolhiam sempre mais informação, que nunca se considerava suficiente. Nos espaços de armazenamento, ela era emparcelada e compactada, por ordem de captação e definição para consulta dos modelos mais recentes, havendo sempre alguns moldes de antigos, mas considerados eficazes, que permaneciam em destaque.
Desta situação resultava uma enorme tensão, com os centros de acção a pressionarem os decisores para que ordenassem aos espaços de armazenamento a disponibilização de toda aquela informação em formato de execução. Questionavam ainda, e de forma constante, os armazenadores quanto à possibilidade de execução da sabedoria. Por outro lado, e perante esta inquirição, estes últimos acabavam por ajudar a sobrecarregar os decisores com as perguntas dos centros de acção. Em adição, os decisores deviam também manter exteriormente uma tranquilidade assimiladora para que não lhes fugisse nada de importante.
Perante isto eram inevitáveis os atritos e que muitas vezes, após prolongada duração, desencadeavam um processo de descontrolo interno. Os decisores ficavam impossibilitados de colher com precisão determinantes dados sociabilização e, simultaneamente, permitiam acções irreflectidas que nada contribuíam para a serenidade desejada na tarefa. Numa primeira fase, desencadeava-se a interrupção, ou deformação, da via de recepção e captação, necessariamente passiva, caracterizada por uma introspecção aparente. Posteriormente, a irreflexão dos actos exteriorizavam o colapso que decorria no âmago do sistema. Em regra, materializava-se acessos de raiva dirigidos a objectos alheios, ou por vezes, caros a si, podendo também ocorrer auto-punição, física e psicológica. Nos casos mais extremos, os quais evidenciavam o total colapso da estrutura de controlo e percepção, e à qual apenas ficava blindada a parte central de armazenamento e execução de acções, o alvo de agressão tornava-se a próprio fonte de conhecimento ou o objectivo de aproximação.