quarta-feira, outubro 12, 2005

Acalmia

Num momento de acalmia resolveu dar-lhe um beijo. Ela chorava inaudivelmente. Como seria possível ter feito tal coisa. A rapariga já não se conseguia levantar. Provavelmente partiu-lhe qualquer coisa. Teria sido o pontapé que lhe havia enviado ao joelho ou teria sido o facto de lhe ter pisado esse mesmo joelho quando ele se encontrava totalmente esticado. Já não se lembra. O mais certo é que ambas as acções tenham levado a tal fim.
Afastou-se dela e foi sentar-se ao fundo da cama. Acendeu um cigarro e inalou profundamente o fumo. Sentia a ira a dissipar-se naquele pedaço de vício. Tremia já menos. Já não ouvia a rapariga. Tinha-a eliminado do seu presente. Daquele momento. Por que razão a havia iniciado a espancar não sabe. Não era por ciúmes pois não mantinham qualquer tipo de relação, para além de serem simples conhecidos de café. Não era por repulsa porque até lhe agradava o ar alegre, descontraído mas com traços de quem observa tudo atentamente. Na realidade, não haviam razões.
Apenas lhe apetecera. Primeiramente queria só assustá-la. Talvez nem isso. Tinham estado a conversar e conversa tornara-se sussurrada. Sentia-se uma tensão aproximadora. Falavam cada vez mais por monólogos pois o movimento dos seus lábios era quase exclusivamente o da aproximação mútua. Estavam prestes a beijarem-se.
O impacto do primeiro estalo pô-la sangrar do nariz. A rapariga olhou-o estupefacta. Que se estaria a passar ali? Nada fazia esperar isto. Que lhe teria passado pela cabeça. O seu olhar inquiridor recebeu os nós dos dedos dele em cheio no sobrolho. Saiu-lhe um grito doloroso da garganta. Breve, muito breve foi esse grito. Ele lançou-lhe as mãos à garganta abafando-o. E não parava de apertar enquanto lhe desferia violentas joelhadas no abdómen e no abaixo ventre.
Olhou-a fundo nos olhos. Via-os injectados de medo. Injectados de sangue aterrorizado. Atirou-a com força de encontro à mesa onde embateu com violência ruidosa. Não havia problema, estavam sós em casa. A rapariga tentou recompor-se. Viu-a virar-se e procurar a porta. Estava para trás dele. Ele aproximou-se e pontapeou-a fortemente o joelho, fazendo-a vergar-se e agarrar-se ao joelho ardente em dor.
Estava confusa. Não percebia. Não gritava, não pedia ajuda. Tinha o pensamento parado pela perplexidade. Sentiu então uma lancinante dor na boca. Percebeu que tinha sido violentamente pontapeada na boca. Sentiu o sabor quente do sangue encher-lhe a boca e escorrer-lhe pelo queixo abaixo. Cuspiu e viu dois dentes voarem em direcção ao chão. Sentiu vontade de vomitar. Quando iria este sufoco parar?
Ele ganhou fôlego e agarrando-lhe fortemente os longos cabelos com uma mão. Agitou-lhe a cabeça ferozmente. Começou a esmurrar-lhe a cabeça. Estava a ficar cansado mais ainda não conseguia parar. Sentia uma demoníaca adrenalina correr-lhe as veias. Enfim atirou-a para uma cadeira. Ela acabou por se sentar refastelada. Pernas esticadas. Pernas esticadas, pensou ele. Pisou o joelho direito. Foi o último e longo grito que ela lançou, caindo ao mesmo tempo da cadeira.
Ela chorava. Rogava silenciosamente para que tudo parasse. Que tudo fosse um pesadelo. Mas e as dores? Dizem que os sonhos são indolores. Viu-o aproximar. Poderia ser desta vez que acabasse com aquele sofrimento e a matasse. Ele agachou-se e beijou-lhe a face, afastando-se para se sentar e fumar.
Agora estava feia. Esmurrada, ensanguentada. Não era a mesma que o acompanhara a casa no início deste serão. Levantou-se e olhou-a com nojo. Como poderia ter feito isto? Levantou o pé e assentou-o com toda a força que possuía sobre o pescoço da rapariga
“Claro que foi o joelho! Até se ouviu o barulho quando o pisei!”

Desiludidos

Há pessoas que vivem para não morrer. Pelo menos, no futuro mais próximo. Outras haverá que vivem para morrer. Isso é uma inevitabilidade. Outras ainda as há que morrem para viver. Alguém por elas foi marcado. Mais, haverá aquelas que morrem para não viver.