Talvez este não seja o melhor começo. Começar com algo que não é meu mas creio que vale a pena ler.
É o maior dos lugares-comuns dizer que o homem não vive sem esperança, sonho, fé. Dos comerciais de tênis aos livros de Paulo Coelho, das reportagens de esportes às palestras em empresas, dosfinais de filmes e novelas às conversas em praças e bares, somos expostos continuamente a esses “chamados”, ora com palavras da moda (“auto-estima”, “motivação”), ora com slogans lucrativos (just do it, “guerreiro da luz”), ora com provérbios antigos (“a última que morre etc.”). Há tantas “mensagens de esperança” que a ansiedade por elas só faz aumentar. Pode-se parafrasear La Rochefoucauld: senão se falasse tanto em esperança, as pessoas não esperariam tanto.Por isso mesmo, quanto mais bichos-papões, melhor, pois a mídia vive desse pêndulo perpétuo entre assustar o público com tragédias, crimes e guerras e consolá-lo em seguida com a idéia de que “a fé não costuma falhar”. Daí o sucesso de filmes-catástrofes e épicos históricos, que voltaram a dominar o cinemão depois do 11 de setembro; eles dão ao espectador uma sensação de proximidade com o apocalipse e, em seguida, como desfecho, uma garantia de paz, amor e reequilíbrio. O otimismo dá as cartas em nosso mundo e, mesmo que este tenha melhorado em muitos aspectos, a ênfase é sempre nas razões para exacerbar aquele. É óbvio que um indivíduo e um grupo de indivíduos precisam desse sentimento de que é possível atenuar sofrimentos e obter avanços materiais e espirituais. Precisam de ânimo, auto-respeito,autoconfiança, disposição em seguir adiante. Mais ainda, precisam fazer uso desse diferencial que constitui a natureza humana: a capacidade de imaginação, não no sentido de fantasia, mas no sentidode criatividade, de elaboração de hipóteses, cenários, reformulações. Nossa biologia é dotada da capacidade de perceber padrões na realidade exterior, estimar previsões a partir deles e tentar influir ou reagir de alguma forma. Tal atributo mental se traduz na linguagem, na consciência, na habilidade de dar nomes, identificar processos, inventar instrumentos de observação, construção e adaptação. E isso seria impossível sem um impulso vital, que se origina da necessidade de sobrevivência, mas que se desdobra em uma variedade inigualável demodos de convívio, expressão e prazer. O mais amargo dos filósofos se agarra à vida; em geral, é amargo porque queria que ela fosse melhor e, logo, importa-se profundamente com ela. “O positivo já nos está dado”, escreveu Franz Kafka, o escritor que melhor enxergou que o desejo de esperança é como a cobra que morde o próprio rabo, um ciclo de auto-alimentação que nos convence de que a fome é sempre maior que a satisfação. “O que nos falta é consumar o negativo”. O que nos falta é poder ter maior resistência às frustrações, é de alguma maneira conseguir atenuar o jogo de polarizações, o teatro de compensações: o desespero que gera a esperança que gera o desespero; o encanto que, por definição, sempre se quebra, senão não seria encanto, e que dá corda para um desencanto que parece dar o tom maior; em suma, a eterna espera por uma redenção, e não apenas pelo instante seguinte de alegria e bem-estar. A questão, portanto, não é aceitar a realidade, conformar-se com as mazelas e fatalidades, abaixar a cabeça para os revertérios da vida; mas é ser mais forte, é reagir com mais rapidez, é ter um lembrete mental de que aquilo pode ser um engano. Freud, no final da carreira, chegou a falar em uma “ansiedade realista”, em um estado de espírito que reconhece a carência essencial da condição humana e, no entanto, resiste aos apelos por uma solução plena, por uma panacéia, por um emplastro de todos os emplastros. Como bem ilustram os brasileiros, fatalismo (“isto aqui não tem jeito mesmo”) e ilusão (“o país do futuro”) são irmãos siameses, inseparáveis. No caso de um conceito como utopia, a complicação é maior. O próprio livro de Thomas Morus, de 1516, é um projeto... utópico: seu anseio era descrever um mundo ideal em que prazeres e virtudes se somassem, em que os valores do paganismo grego se harmonizassem com os do cristianismo medieval, em que epicurismo e estoicismo se conciliassem de modo definitivo, para que assim se renovasse a sociedade européia em todos os aspectos – moral, econômico, político, religioso. Trata-se da obra de um humanista, influenciado pelo grande Erasmo (autor do “Elogio da Loucura”), e que ao mesmo tempo é um político e crente que sonha preservar a Igreja. More, embora defendesse eleições democráticas e tolerâncias religiosas, queria abolir, por exemplo, a propriedade privada, numa espécie de pré-comunismo (o que confirma o quanto há de impulso religioso na ideologia comunista). Bem, hoje sabemos que não foi assim que uma boa parte das sociedades modernas resolveu seus principais problemas... A própria utopia desenhada por Marx e Engels não é nada hoje, até mesmo porque suas profecias sobre a decadência inevitável do capitalismo não se realizaram. Pressões operárias por melhor repartição do capital podem existir sem a fantasia socialista. Há que se distinguir idealismo e inconformismo. O inconformismo é o gesto de cidadãos críticos e criativos que querem uma sociedade mais justa e educada. O idealismo é a suposição de que precisamos de um sistema capaz de solucionar tudo de uma vez. Quanto mais bela a utopia no papel, mais estrago causa.
Daniel Piza, editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo
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